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O consulado de MLR e, de um modo geral, a governação pêéssiana tutelada por Sócrates, criou um caldo de cultura que permitiu uma união impensável entre milhares de professores, que pensam de formas muito diferentes sobre o ensino, a escola, a sociedade…
Face a um inimigo astuto, ignóbil e sem escrúpulos, os professores foram obrigados a relevar divisões ideológicas profundas, formações pessoais e políticas distintas e percursos profissionais diversos, criando as condições que pudessem repor um mínimo de dignidade profissional e de respeito individual.
A bandeira que serviu para forjar essa unidade foi a defesa da Escola Pública, sem que sobre o conceito tenha havido a reflexão necessária, com vista à clarificação do(s) sentido(s) com que foi usado por cada actor. No entanto a Escola Pública, e o papel que deve desempenhar na sociedade em que vivemos, não tem o mesmo significado para cada um dos milhares de professores que saíram à rua em sua defesa.
Tal como não tem para cada um dos professores que nos blogues, seja como editor/autor, seja como comentador, continua ainda hoje a escrever em sua defesa.
O conceito de Escola Pública não é o mesmo conforme nos situamos mais à esquerda ou mais à direita do espectro político ideológico na nossa sociedade.
A Escola Pública que pessoalmente defendo nada tem a ver com a Escola Pública do Estado Novo. Não porque renegue a escola em que fiz os meus estudos primários e secundários, mas porque essa era uma escola que só servia uma pequeníssima parte da população, e isso teve consequências muito nefastas para o desenvolvimento do país.
Mas essa não é a posição de muitos dos mais influentes opinadores, quer na blogosfera, quer na comunicação social tradicional. Argumentando com uma alegada crise educacional, com a alegada falta de qualidade do ensino, da escola e dos alunos, muitos professores fazem a apologia de um retorno ao passado, como panaceia para tudo o que não gostam na escola de hoje.
Sem ser exaustivo, posso mencionar as posições de Nuno Crato sobre a defesa dos exames, secundadas pelo Ramiro e uma corte de comentadores, para não me referir a outros professores que trabalham no ensino pós-secundário.
Acontece que o discurso que usam nada tem de novo, a não ser alguma modernidade na roupagem. Porque o cerne das críticas ao ensino, à escola e aos estudantes, é velho de mais de cem anos, como se pode constatar pela leitura deste texto de António Nóvoa, a que já tinha feito referência noutro post:
A IGNORÂNCIA DOS ALUNOS
O ETERNO REGRESSO DO MESMO DISCURSO
É difícil situar com rigor o período em que se generaliza a ideia que os alunos são cada vez mais ignorantes. Estamos perante um discurso atemporal que produz, utilizando critérios próprios de cada momento, uma argumentação plausível e verificável. A emergência das ciências humanas e a forma como a psicologia é aplicada à educação a partir do final do século XIX concedem-lhe um verniz de cientificidade e objectividade.
Aqui ficam algumas citações, década a década:
• “A maioria dos estudantes […] desfalece perante o mais rudimentar trabalho analítico; raciocina errado, se raciocina; não sabe observar; não sabe classificar: deduz mal, induz pior” (Decreto de 1894).
• “Em Portugal, o aluno sai da escola primária um verdadeiro ignorante“ (Albano Ramalho, 1909).
• “Os alunos […] aproveitam pouco, pela sua falta de preparação liceal, pela nenhuma assiduidade da maioria deles e por não completarem em casa com estudo aturado as doutrinas exibidas na aula” (J. Leite de Vasconcelos, 1915).
• “É manifesta a falta de preparação que os alunos dos liceus apresentam ao ingressarem nos estudos superiores: deficiências de conhecimentos científicos e de desenvolvimento mental“ (Eusébio Tamagnini, 1927).
• “Verifica-se nas respostas de muitos examinandos uma ignorância absoluta de certas matérias e lêem-se em muitas delas os disparates mais fantásticos” (Alves de Moura, 1939).
• “Quem anda envolvido nas lides do ensino sabe a dose de benevolência que é preciso empregar para não excluir maior número de alunos, dado o grau de preguiça e de indigência mental a que se chegou“ (João Anglin, 1947).
• “O nível mental da maioria dos alunos do ensino liceal é muito baixo“ (Fernando Pinho de Almeida, 1955).
As referências poderiam continuar, registando essa espécie de passa-culpas que Octávio Dordonnat denuncia em 1949: o professor universitário diz que os alunos vêm muitíssimo mal preparados; por sua vez, o professor liceal não perde a oportunidade de afirmar que o seu trabalho é prejudicado pela deficiente preparação dada na escola primária; o professor primário esse, na impossibilidade de atribuir culpas a inferior grau de ensino, queixa-se da influência perniciosa das famílias ou do atraso mental das crianças.
No decurso do século, uma certa vulgata psicológica (sobre o nível mental dos alunos, as suas características psíquicas e comporta mentais, etc.) vai-se misturando com conceitos sociológicos transformados em lugares-comuns (sobre as origens sociais dos alunos, a reprodução das desigualdades, etc.) produzindo a mais inútil literatura sobre temas educativos.
São ideias persuasivas e persistentes, que servem apenas para “desculpabilizar” ou para “denunciar’: Neste caso,”optimistas” e”pessimistas” situam-se exactamente no mesmo plano: uns e outros recusam-se a um esforço de análise e de compreensão. Candidamente, revelam a sua ignorância (dos factos, das estruturas, das escolas) para demonstrarem a ignorância dos alunos.
NÓVOA A. (2005). EVIDENTEMENTE: Histórias da Educação p. 57. Porto: ASA Editores SA
Albertino Ferreira said:
Viva! Creio que de vez em quando se pode deixar a diplomacia de lado. E, na minha opinião, o que alguns desses blogueiros, a que se refere, o que revelam é que já entraram na fase da senilidade irreversível.
AMCD said:
Excelente post!
Zé Manel Faria said:
O sr. fjsantos culpa os docentes por terem sido” obrigados(?) a revelar divisões ideológicas profundas” e por não saberem como defender a escola pública. No limite acha que os profs nem sabem o que isso seja, mas ele sabe, claro. Acontece que os profs não foram obrigados coisa nenhuma. Os profs sempre estiveram divididos quer em termos ideológicos,quer políticos,quer em relação a muitos outros aspectos e isso não é necessáriamente uma calamidade como ele pretende.É facto assumido e nada mais.O ponto essencial é que, face aos mais graves ataques de que há memória, as pessoas uniram-se em torno de uma série de objectivos comuns.Essa é a nossa glória.Um desses pontos é precisamente a defesa da escola pública.Não é preciso ir desenterrar as citações desse passado longínquo!Basta atermo-nos às estatísticas internacionais para percebermos que o sistema educativo português esta´doente e precisa de reforma séria.Nós na APEDE cedo compreendemos que defender a escola pública é pugnar pela melhoria da sua eficácia. E isto consegue-se com um processo de gestão simplificado e realmente democrático,com turmas menores,com curricula mais coerentes, com exames a par da avaliação contínua,com um ensino especial devidamente enquadrado, com um papel activo por parte das organizações científicas de professores e toda uma série de outras medidas que preconizamos na nossa Proposta Global a que a Fenprof nem se dignou responder.Como vê não andamos a dormir nem queremos regressar ao passado.Queremos é um futuro digno, e ele só pode ser construído através de trabalho empenhado e sério que inclua a participação de todos(mesmo os que pensam diferente), nunca com esta demagogia barata .
Zé Manel
fjsantos said:
Óh Zé Manel,
eu não escrevi que os professores tinham sido obrigados a revelar divisões.
O que está escrito é que tivemos que relevar as divisões, que também tu concordas existirem há muito.
Relevar e revelar são verbos com significados distintos e, neste caso, antagónicos.
O que eu quis dizer, e tu percebeste exactamente ao contrário, é que por um tempo esquecemos as divisões, em face de um inimigo comum. Mas elas (as divisões políticas e ideológicas) continuam lá e não podem ser escamoteadas.
Ok? 😉
Valdecy Alves said:
Olá!
Amigo blogueiro, veja matéria e fotos sobre a manifestação dos professores de todos os municípios do Ceará, nas ruas de Fortaleza, pelo piso e por um plano de carreira decente, ////acessar em: http://www.valdecyalves.blogspot.com
Pra vc o soneto da infidelidade ao professor, que fiz parodiando Vinicius de Moraes:
A todo professor sou desatento
Sempre, com zelo tal e tanto e tanto
Pois educar é o meu desencanto
Extinguir professor: meu pensamento!
Perseguirei a cada vão momento
Esteja onde estiver, qual seja o canto
Levarei cada um ao pior do pranto
Ao pior pesar, nenhum contentamento!
E assim mais tarde, quando me procure
Atrás do piso, dor de quem ensina
Da valorização que vou negar-te!
Do FUNDEB direi quanto à propina
Desvio não o total, posto que é parte
De toda corrupção, que sempre dure!
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