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Nos últimos dias, a propósito do funcionamento da justiça em Angola, do julgamento de um caso mediático e da separação de poderes constitucionalmente consagrada num país soberano e independente, a barragem de críticas ao PCP assumiu foros de 1ª página.

Desde o destaque dado a uma afirmação demagógica e mentirosa de Catarina Martins, até aos dislates fundados na ignorância atrevida de Daniel Oliveira & Cia. Lda. ou de Pedro Mexia & sus clowns, tudo serviu para acusar o PCP de defender uma alegada ditadura a troco de um punhado de dólares ou de uma suposta intimidade ideológica que, de todo, não existe.

Como não quero formular qualquer juízo com a ignorância de que acuso estes opinadores e responsáveis políticos, procurei alguma informação e encontrei a reprodução de um interessantíssimo debate entre quatro juristas angolanos, que saberão do assunto muito mais do que todos nós, que acompanhamos o caso à distância e condicionados por uma comunicação social ignorante e comprometida.

Tentemos, então, de forma clara e didáctica, colocar as coisas em perspectiva:

  1. Um grupo de 15+2 jovens angolanos foram julgados por um tribunal de 1ª instância, no caso o Tribunal Provincial de Luanda;
  2. Esses jovens foram a tribunal indiciados de crimes de “actos preparatórios de rebelião”,  de “atentado contra a figura do presidente da república” e de “atentado contra as instituições”;
  3. Após a produção de prova em tribunal, e do contraditório apresentado pela defesa, o juiz emitiu uma sentença, na qual substituiu os crimes indicados no despacho de pronúncia por um crime de “associação de malfeitores”;
  4. A defesa dos réus apresentou, de imediato, um recurso dessa sentença;
  5. O recurso apresentado, face à lei angolana, devia ter efeitos suspensivos da pena aplicada, para além de remeter para um decisão do tribunal superior, no caso o Supremo Tribunal;
  6.  Apesar disso, o juiz decidiu não suspender a pena de prisão efectiva e remeteu os réus para a cadeia, quando deveria devolvê-los à situação anterior ao julgamento, até decisão do supremo.

Destes factos pode concluir-se que:

  • é questionável o facto de o juiz ter alterado a tipificação do crime de que foram acusados, sem disso ter dado prévio conhecimento à defesa dos réus;
  • a lei permite, em circunstâncias definidas com clareza, que o juiz faça essa alteração;
  • o juiz terá exorbitado os seus poderes ao não suspender o efeito da sentença, após ter aceite o recurso apresentado pela defesa;
  • compete ao Supremo Tribunal apreciar o recurso, determinando se o juiz procedeu correctamente ao alterar o crime para “associação de malfeitores”, bem como se devia, ou não, ter devolvido os réus à situação anterior ao julgamento.

Ainda que o recurso apresentado pela defesa não obtenha provimento no ST, há recurso para o Tribunal Constitucional, que se deverá pronunciar sobre eventuais prejuízos de direitos, liberdades e garantias, bem como apreciar eventuais pedidos de Habeas Corpus, que a defesa entenda pertinentes.

Nestas circunstâncias, em face do que determina o sistema de justiça angolano, os estrangeiros, que nós portugueses somos, não têm qualquer legitimidade para se pronunciar sobre um processo que ainda não terminou e sobre uma sentença que, não tendo transitado em julgado, não é definitiva.

Do mesmo modo as instituições portuguesas, e em particular a Assembleia da República, não são competentes para se pronunciar sobre o funcionamento das instituições de um país soberano, cuja independência reconhecemos há muito tempo.

E Portugal, nomeadamente a AR, não pode pronunciar-se sobre o funcionamento de órgãos de poder de países cuja constituição consagra a separação de poderes e consagra a existência de duas instâncias de recurso das decisões dos tribunais de comarca. É que tal lhe está vedado pelo n.º 1 do Artigo 7.º (Relações internacionais) da CRP,   onde se pode ler que:

  1. Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre os Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade.