O Paulo Guinote continua a manter, muito justamente, uma grande preocupação com a aplicação do decreto sobre a autonomia, administração e gestão das escolas, que foi baptizado com o nome de código 75/2008.
Já em Fevereiro escrevia o seguinte:
«Vamos ser claros: há um acordo há coisa de uma dúzia de anos em fazer letra morta de uma parte incómoda da LBSE. Quando foi possível, não houve coragem política (ou presidencial) para alterá-la e então entretemo-nos a contar contos de fadas para adormecer os incautos.
Não sei, nem me interessa muito, se estou do lado dos atavismos, do conservadorismo, do passado, se sou um destroço à deriva de velhas concepções de gestão escolar, etc, etc, etc. O que me interessa é que isto se constrói tudo em cima de uma manifesta ilegalidade que serviu na Madeira para o Tribunal Constitucional chumbar propostas similares a estas, mas que por cá, com uma postura mais ou menos crítica, parece não incomodar ninguém.»
Para lá destas “minudências” legais que o Paulo e mais alguns resistentes continuam a achar relevantes, o que mais me incomoda neste decreto lei, como de resto em todo o pacote legislativo de MLR, é o facto de os governantes nos tomarem por parvos e ignorantes, a quem se pode enganar com meia dúzia de frases politicamente correctas.
Nesse particular é curioso relembrar João Barroso que, num artigo publicado na Revista Portuguesa de Educação em 2004, afirmava que «a autonomia das escolas não se limita a ser uma “ficção”, tornando-se muitas vezes, uma “mistificação” legal, mais para “legitimar” os objectivos de controlo por parte do governo e da sua administração, do que para “libertar” as escolas e promover a capacidade de decisão dos seus órgãos de gestão.»
Na verdade, uma leitura atenta e crítica do DL75/2008 permite-nos descobrir, para além das “trapalhadas ilegais” referidas pelo Paulo Guinote, uma agenda centralista na melhor tradição burocrático-napoleónica, encoberta por uma retórica descentralizadora que poderá ser adoptada por qualquer seguidor do neo-liberalismo mais serôdio.
Vejamos então alguns breves exemplos:
Enquanto ficção legal, logo no Artigo 3.º – Princípios Gerais – no n.º 2, se afirma que «A autonomia, a administração e a gestão dos agrupamentos de escolas e das escolas não agrupadas subordinam-se particularmente aos princípios e objectivos consagrados na Constituição e na Lei de Bases do Sistema Educativo, designadamente: Assegurar o pleno respeito pelas regras da democraticidade e representatividade dos órgãos de administração e gestão da escola, garantida pela eleição democrática de representantes da comunidade educativa.»
No entanto, no seu órgão de direcção estratégica, responsável pela definição das linhas orientadoras da actividade da escola, terão assento diversos elementos (na maior parte dos conselhos gerais a sua maioria) não eleitos, uma vez que serão designados – os representantes das autarquias, os representantes dos pais e os representantes da comunidade. Apenas os professores e os representantes do pessoal não docente (necessariamente em minoria) serão obrigatoriamente eleitos, já que no que respeita aos representantes dos alunos só haverá eleição no caso das escolas secundárias, não havendo representação de discentes nas escolas e agrupamentos que tenham apenas o ensino básico.
Na mesma linha de desrespeito pelo princípio da eleição democrática, fica consagrada a composição do conselho pedagógico que inclui apenas membros designados, ou pelo director, ou pelas associações de pais. O único membro eleito neste órgão será o director, mas a sua “eleição” será feita por um colégio eleitoral restrito – o conselho geral – que como ficou já dito é maioritariamente constituído por elementos designados.
Mas se no que respeita à ficção da eleição democrática dos representantes da comunidade fica já clara a mistificação de que nos fala Barroso, no que concerne ao controlo burocrático-napoleónico podemos também fazer uma breve análise, através da qual fica claro que, ao nível interno, os poderes do director são plenos e absolutos, como se pode verificar pela leitura dos seguintes artigos:
«Artigo 20.º – Competências
2 — Ouvido o conselho pedagógico, compete também ao director:
b) Aprovar o plano de formação e de actualização do pessoal docente e não docente, ouvido também, no último caso, o município.
4 — Sem prejuízo das competências que lhe sejam cometidas por lei ou regulamento interno, no plano da gestão pedagógica, cultural, administrativa, financeira e patrimonial, compete ao director, em especial:
a) Definir o regime de funcionamento do agrupamento de escolas ou escola não agrupada;
b) Elaborar o projecto de orçamento, em conformidade com as linhas orientadoras definidas pelo conselho geral;
c) Superintender na constituição de turmas e na elaboração de horários;
d) Distribuir o serviço docente e não docente;
e) Designar os coordenadores de escola ou estabelecimento de educação pré-escolar;
f) Designar os coordenadores dos departamentos curriculares e os directores de turma;
g) Planear e assegurar a execução das actividades no domínio da acção social escolar, em conformidade com as linhas orientadoras definidas pelo conselho geral;
h) Gerir as instalações, espaços e equipamentos, bem como os outros recursos educativos;
i) Estabelecer protocolos e celebrar acordos de cooperação ou de associação com outras escolas e instituições de formação, autarquias e colectividades, em conformidade com os critérios definidos pelo conselho geral nos termos da alínea do n.º 1 do artigo 13.º;
j) Proceder à selecção e recrutamento do pessoal docente, nos termos dos regimes legais aplicáveis;
l) Dirigir superiormente os serviços administrativos, técnicos e técnico -pedagógicos.
5 — Compete ainda ao director:
a) Representar a escola;
c) Exercer o poder hierárquico em relação ao pessoal docente e não docente;
d) Exercer o poder disciplinar em relação aos alunos;
e) Intervir nos termos da lei no processo de avaliação de desempenho do pessoal docente;
f) Proceder à avaliação de desempenho do pessoal não docente.
6 — O director exerce ainda as competências que lhe forem delegadas pela administração educativa e pela câmara municipal.
Artigo 25º – Mandato
9 – O subdirector e os adjuntos podem ser exonerados a todo o tempo por despacho fundamentado do director.
Artigo 40º – Coordenador
5 – O coordenador de estabelecimento pode ser exonerado a todo o tempo por despacho fundamentado do director.
Artigo 43º – Articulação e gestão curricular
6 – Os coordenadores dos departamentos curriculares podem ser exonerados a todo o tempo por despacho fundamentado do director.»
Assegurado que fica este controlo absoluto pela figura do director, a autonomia da escola fica dependente das relações políticas que se estabeleçam entre este e o poder autárquico, representado no conselho geral, ou o director regional de quem depende a homologação da eleição e a decisão da cessação da comissão de serviço.