Realizou-se no sábado a Conferência Nacional em Defesa de um Portugal Soberano e Desenvolvido.
Entre as diversas intervenções, de enorme qualidade, houve uma que se destacou pela forma como emocionou todos os presentes, que no final agradeceram com um forte aplauso de pé.
A intervenção da actriz Joana Manuel merece ser lida com atenção e, com a devida vénia, atrevo-me a publicá-la aqui.
Há umas semanas pediram-me que fizesse uma pequena intervenção pública que “juntasse os problemas dos jovens, da precariedade e da emigração”. A minha reacção a esta etiqueta começa a ser recorrente. Jovem, eu? Mas por alminha de quem?
É verdade que enquanto crescia percebi que o conceito de “jovem” se esticava à medida que eu própria avançava na idade. Primeiro o Cartão Jovem até aos trinta anos — quando eu tinha quinze se alguém me dizia que aos trinta se era jovem, eu ria-me. Depois esta noção de que uma licenciatura não vale sem mestrado que não vale sem doutoramento, que não vale sem uma sucessão inefável de estágios não-remunerados porque nunca se ganha experiência suficiente e em casa dos pais até se está muito bem. Quando eu tinha quinze anos, se pensasse que esperaria até aos vinte e quatro para ter o meu espaço, eu ria-me — e hoje, aos trinta e seis, percebo que muitos da minha idade nunca tiveram o seu espaço ou já o perderam entretanto. Pois é. Mas eu tenho trinta e seis anos. Jovem, eu? Então e nós fazíamos pouco dos jovens agricultores de quarenta anos? E comecei a pensar nisto tudo e o caldeirão cada vez me parecia mais uma caldeirada. E dei por mim a debruçar-me no caldeirão, a procurar nele o nosso reflexo.
A dureza da vida e a precariedade fizeram, dos nossos pais e dos nossos avós, adultos antes do tempo. Os homens que nunca foram meninos, as meninas que pareciam já ter nascido mulheres. Os adultos de nove, dez, onze anos, a trabalhar de sol a sol nas cozinhas de famílias endinheiradas. Como a minha mãe fez antes de aos dezoito anos dar o salto para os Pirinéus. Os adultos de nove, dez, onze anos, vindos sozinhos do Alentejo e que sozinhos abriam de madrugada as portas dos cafés na Defensores de Chaves e comiam uma sandes por dia. Como fez o meu pai, que aos quinze anos estava convencido de que havia de morrer de tuberculose, antes sequer de imaginar que eu ou a minha irmã pudéssemos existir. Foi essa a realidade que me deu a rede que hoje me segura não poucas vezes, substituindo a rede que o Estado me nega a cada dia mais. O património do pequeno comércio construído pelos homens que nunca foram meninos, pelas meninas que parecem já ter nascido mulheres. E que o fizeram para isso mesmo, para nos segurar. Para que não andássemos para trás. Para que nós vivêssemos melhor. Para que nós vivêssemos.
Eu só nasci depois da revolução. O meu pai era um jovem de 37 anos, e recusava-se a ter filhos em ditadura. Sou do ano da Constituição e quando eu nasci, aquele jovem de 37 anos era um adulto há muito feito, seguro de que a democracia recém-conquistada nos distanciaria mais e mais as realidades, a minha da dele. Deu-me alimento e pensamento, escola e saúde, arte e livros e liberdade. Ensinou-me a cantar que o povo é quem mais ordena e que havíamos de chegar ao fim da estrada unidos como os dedos da mão. E eu também pensei que nunca poderíamos voltar atrás. Mas hoje percebo que o que tornava o meu pai um adulto é o que a mim me impede de o ser. A precariedade e a falta de horizontes. Um Estado que se nega a retribuir-me o que me deve. Uma Segurança Social que, ao invés de me amparar, me persegue, me suga uma contribuição altíssima todos os meses para depois me negar a baixa médica, a licença de maternidade, o subsídio de desemprego.
Trabalhei quase uma década num teatro nacional, num teatro do Estado, que agora é uma EPE. A recibos verdes. Com os descontos para a Segurança Social totalmente a meu cargo. Com contratos sucessivos de prestação de serviços. Sem qualquer tipo de subsídio. E mesmo assim, para o meu meio, para a minha classe profissional, fui uma privilegiada. Tive trabalho relativamente bem remunerado durante um longo período de tempo, apesar dos horários desregulados e da falta de direitos. Dei o couro e o cabelo, como antes de mim dera o meu pai. E quando saí, como aconteceu com o meu pai quando decidiu que não queria mais patrões, saí sem nada. Bom, saí com boas memórias e um currículo que hoje não me serve para muito, com as artes estranguladas e chutadas para canto. Mas mais nada. Pago 20 euros por uma urgência hospitalar e não tenho perspectivas de vir a ter uma reforma digna. Quero ser mãe e não vejo muito bem como vou conseguir fazê-lo. Quero trabalhar e não me deixam. E mesmo assim vou cumprindo umas tarefas que me pagam as contas. E mesmo assim, no hoje que vivemos, sinto-me uma privilegiada. Uma jovem privilegiada. E se eu sou jovem, pergunto: o que sabemos quando sabemos que um em cada dois jovens que não emigraram estão neste momento desempregados? Jovens de que idades?
Tenho muitos amigos que já saíram ou estão em vias de sair. Tenho amigos que foram completar a sua formação no estrangeiro e queriam voltar, mas não conseguem. Outros regressam, contra tudo e contra todos. E contra todas a probabilidades de conseguirem construir uma vida mais estável, mais rica, mais vida que a dos seus pais. Eu, lá está, olho em volta e sou privilegiada. Continuo a comer todos os dias. Continuo a ter um tecto. E continuo a passar recibos. Embora seja cada vez mais difícil cobrá-los, mas continuo, quinze anos depois de ter começado a trabalhar.
Será que é isto ser empreendedor? Devo sentir-me feliz, portanto, devo sentir-me uma peça activa desta velha ordem mundial cheia de operações plásticas. Vivo de prestar serviços, consecutivamente às mesmas entidades sem que disso alguma vez advenha qualquer vínculo. Ou sem que o Estado reconheça o estatuto de intermitência inerente à minha profissão e que em França, por exemplo, que está longe de ser um paraíso, nem se discute. Não é um estatuto de privilégio: cria uma rede de segurança, mas estabelece também deveres, trabalho pedagógico, projectos com as comunidades, actividade constante mesmo quando não se tem um espectáculo em cena. Aqui sou uma “subsídio-dependente”. Embora na minha profissão preste um serviço consagrado na Constituição e que o Estado na realidade não subsidia, antes delega.
Subsídios, esses de que me dizem que eu dependo, nunca os vi: nem de Natal, nem de férias, nem de desemprego, nem por doença. Nem eu, que sou por natureza intermitente, nem a grande maioria da minha geração ou das gerações imediatamente anterior e posterior à minha, que têm funções fixas, horários fixos, hierarquia fixa, local fixo de trabalho. Rede de segurança? Apenas aquela mesma construída pela vida dura da minha mãe que já nasceu mulher, pelo esforço imensurável do meu pai que nunca foi menino.
E foi isso que percebi que percebia ao preparar esta intervenção: o que impediu os meus pais de serem jovens é aquilo que me cola à pele o epíteto. Jovem. É uma espécie de espelho invertido. Não sei se basta passar através dele, como a Alice. Um dia vamos mesmo ter de parti-lo.
*Intervenção na Conferência Nacional Em defesa de um Portugal soberano e desenvolvido, na Faculdade de Ciências de Lisboa, a 23 de Fevereiro de 2013