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Os tempos difíceis que vivemos não se esgotam nas dificuldades económicas e na crise financeira que atravessamos.
Podemos mesmo afirmar que, face aos mecanismos soft de controlo social que são utilizados pelas forças dominantes na sociedade, é a própria democracia que está em causa.
Sem que a esmagadora maioria da população se tenha dado conta, os novos modos de governança utilizados e impostos pelo capital e pelos seus administradores executivos – os partidos da indiferenciação central que abrange o arco da democracia cristã à social-democracia, seja mais alaranjada ou amarelada – traduziram-se numa reorganização dos poderes existentes na sociedade.
Quando recorrentemente ouvimos comentadores indignados e pesarosos pela inexistência de “estadistas como os que construíram a Europa”, devíamos estar atentos e ver as lágrimas de crocodilo que rolam ao sabor desse discurso.
Hoje muitos se queixam de que o poder político está subjugado ao poder económico, esquecendo ou omitindo dolosamente que o poder económico utiliza como instrumento dessa subjugação o poder mediático, de que se apoderou com a conivência dos tais “estadistas” de antanho.
No nosso país está ainda por fazer a história da privatização da comunicação social e das implicações que a liberalização das ondas hertezianas teve na apropriação dos meios de comunicação social pelos grandes grupos económicos nacionais e estrangeiros, bem como a história de como os governos apoiaram tablóides em dificuldade económica ao mesmo tempo que foram asfixiando grande parte da imprensa regional e local que se constituía como espaço de liberdade e reflexividade cidadã.
Sob a capa da objectividade e da informação especializada, temos vindo a assistir à imposição de um pensamento único, promotor da agenda neoliberal e profundamente antidemocrático, porque cerceador de vozes contraditórias. E sempre ao serviço da agenda económica imposta ao poder político.
Um excelente exemplo de como se processam estes mecanismos de imposição da agenda económica sobre a decisão política foi analisado numa tese de doutoramento e em diversos artigos publicados em revistas científicas, a propósito do papel do jornal Público e do seu ex-director José Manuel Fernandes na questão da publicação dos rankings escolares.
Tratando-se de uma análise e um discurso que ajuda a perceber, e pôr em causa, o cânone dominante e o poder mediático, ficou “convenientemente” remetido à circulação nos meios académicos. Talvez por isso o convite que deixei à(o)s jornalistas que “fazem” educação; e estiveram no dia 28 de outubro na Bucholz, para estarem presentes no IE a assistir ao seminário “Uma análise da reflexividade produzida pela imprensa escrita de referência a propósito dos rankings escolares” não tenha sido aceite.
Também por isso aqui fica um pequeno excerto de um artigo da professora Mª Benedita Portugal e Melo, que proporcionou a quem assistiu um excelente seminário.
Segundo Ramonet, os conflitos entre a imprensa e o poder adquiriram, actualmente, uma dimensão inédita não só porque o poder já não se identifica unicamente com o poder politico, devido a ascensão dos poderes económico e financeiro, como porque a comunicação social já não se encontra numa relação automática de dependência com o poder politico.
Como a própria hierarquia tradicional dos poderes foi alterada o primeiro poder é hoje claramente exercido pela economia, sendo o segundo (fortemente interligado com o primeiro) o poder mediático, constituindo este um instrumento de influência, de acção e de decisão tão forte que remeteu para o terceiro lugar o poder politico.
Nesta ordem de ideias, a informação veiculada pela comunicação social poderá ser encarada como uma «informação-mercadoria» que também serve os interesses dos grupos industriais e financeiros. As pressões exercidas pelos accionistas proprietários dos media sobre o conteúdo da informação e a forte concorrência mediática levarão os media a procurarem atingir, entre outros objectivos, a rentabilidade económica e o lucro.
Terá sido esta principal motivação que esteve subjacente à produção de notícias sobre a avaliação do sistema de ensino e sobre o ranking escolar?
A verdade é que através da construção destes temas e do seu «lançamento» para a «praça pública» foi possível obter bastante informação, que originou a construção de mais informação passível de ser publicada ao longo de bastantes meses. A luta pela obtenção de informação sobre os exames nacionais do 12º ano levada a cabo por este jornal pode, por isso, também ter estado relacionada com um principio economicista simples: informação origina mais informação que pode ser vendida.
De facto, as empresas de comunicação escrita são empresas económicas que tem de ser concorrenciais no mercado económico. Neste sentido, o campo jornalístico tem de oferecer produtos capazes de serem vendidos no mercado jornalístico. O produto posto à venda pelo Publico terá sido a própria «opinião pública» publicada que se foi formando e alimentando continuamente a propósito das questões educativas que o próprio jornal previamente determinou.
Mas, para além disso, os jornalistas do Público, como todos os outros, possuem determinadas posições ideológicas que consciente ou inconscientemente veiculam nas noticias que produzem. Na verdade, os jornalistas não formam um corpo homogéneo, encontrando-se divididos por pertenças de classe, clivagens ideológicas e posições distintas perante o próprio processo de produção noticioso. Assim, quer as opções editoriais tomadas pelos directores e subdirectores no que respeita as questões da avaliação do ensino e ao ranking escolar, quer a produção de opiniões que foram divulgadas a este respeito, revelam a orientação das suas concepções ideológicas. Em nome da defesa da modernização do sistema educativo português, estes actores sociais, na retórica argumentativa que produziram a propósito da necessidade de se proceder a avaliação dos estabelecimentos de ensino, revelaram um conjunto de crenças associadas à lógica da racionalidade económica, da optimização e promoção da eficácia características das actuais tendências neoliberais que assentam na ideologia do mercado.
Melo, M.B. (2005), Os circuitos da reflexividade mediatizada, in Análise Social vol. XI (176), 2005, 595-617