Os resultados das eleições de 5 de Junho foram globalmente maus para as forças de esquerda, embora só por falta de lucidez se pudesse pensar que as coisas seriam diferentes.
Para os professores o panorama piorou porque o número de deputados que sempre se mantiveram firmes na defesa dos nossos problemas e anseios baixou de 31 para 24. Obviamente excluo deste número os deputados eleitos pelo PS, embora possa admitir que na actual legislatura venham a ter algum assomo de consciência e se recusem a desvirtuar completamente a Constituição da República, escancarando a porta legal para o assalto dos Chicago Boys portugueses ao que resta do nosso estado social.
Quem tenha olhado com atenção para a composição do actual governo, tendo conseguido ver para lá do efeito propagandístico da diminuição do número de ministros, ficou desde logo preocupado com a escolha dos ministros anunciados como independentes. Quais cavaleiros do apocalipse, os 4 independentes e as pastas que lhes foram atribuídas são a evidência, que nem seria necessário explicitar, de que estamos sob o ataque final dos discípulos de Milton Friedman. Pedro Passos Coelho (PPC) optou por colocar à frente dos ministérios chave para a execução desse plano quatro fervorosos adeptos dos princípios do deus-mercado. E essa escolha é clara quanto às intenções de promover a entrega ao capital dos sectores mais lucrativos da economia, como é o caso dos monopólios naturais da água e energia, estratégicos como a rede energética e as comunicações, ou os sectores sociais como a saúde e a educação.
Dias mais tarde o programa do governo limitou-se a colocar no papel essas intenções, deixando apenas camufladas e subentendidas as questões que neste momento possam parecer mais controversas ou gerar algum mal-estar social.
No que à educação diz respeito estamos perante uma situação difícil e complexa. Se Maria de Lurdes Rodrigues (MLR) foi um factor de unificação da esmagadora maioria da classe, incluindo até muitos professores que tradicionalmente se reviam nas posições do PS, já Nuno Crato (NC) será factor de divisão e separação de águas, conseguindo até recuperar parte substancial dos apoios que a sua antecessora teve no início do seu mandato, antes de ter passado à condição de descartável na comunicação social e má onda eleitoral para o PS.
O discurso anti-eduquês que nada significa, para lá de ser um excelente negócio e dar visibilidade a alguns dos seus praticantes como NC, Maria do Carmo Vieira (MCV) ou Guilherme Valente (GV), o apelo ao rigor e à autoridade ou o acenar com muitos exames são artifícios retóricos que soam bem aos ouvidos de muitos professores. Disso é sinal explícito o aplauso generalizado ao ministro, que é ampliado e difundido na comunicação social e nos blogues de professores.
De resto, na blogosfera docente apenas um factor diminui a intensidade do aplauso a NC e PPC: não terem ainda suspendido a ADD. Só isso divide os que em 5 de Junho escolheram votar à direita, levando a que os desiludidos pela não suspensão se reúnam em torno da bandeira Santana Castilho (SC), que se assume desde a primeira hora como o defensor total e definitivo dos professores defenestrados pelo incumprimento da palavra do 1º ministro.
Isto coloca-nos perante a situação extremamente difícil em que se continuará a fazer a resistência ao ataque neoliberal contra a escola pública, uma vez que continuaremos a assistir a um ataque aos direitos de todos os trabalhadores embrulhado num discurso de procura de consensos sociais, de rigor e exigência do mercado por oposição ao laxismo da esquerda estatista, e da inevitabilidade de obedecer aos ditames de quem nos tutela sob pena de acordarmos um dia sem salários.
Fica assim claro que isto só lá vai com muito trabalho e dedicação. Isto só lá vai se for possível explicar que o projecto de NC para a educação visa acelerar o processo de desmantelamento da escola pública, substituindo-a pelo conceito de serviço público de educação que poderá ser prestado por uma escola municipal ou uma escola privada, as quais deverão concorrer entre si para que se elimine a pior segundo uma lógica do darwinismo económico defensor da sobrevivência dos mais fortes e aptos num mercado concorrencial.
Por isso o que se adivinha relativamente ao modelo organizacional das escolas é o aprofundamento do modelo actual de gestão, com eventual profissionalização dos directores e progressiva diminuição da intervenção dos professores nos órgãos de decisão estratégica e operacional da escola. Do mesmo modo que o programa de verticalização das unidades de gestão replica o modelo dos grandes estabelecimentos privados, que vendem serviços educativos do pré-escolar ao 12º ano.
No que diz respeito à carreira docente é fundamental que os professores saibam que a sua simplificação, associada ao reforço do poder das direcções, significa que deixará de haver carreira e os professores passarão a progredir de acordo com o arbítrio dos órgãos de gestão da escola em que trabalham. Sem esquecer que tudo isto está intimamente ligado à facilitação do processo de contratação e despedimento, numa lógica eminentemente empresarial de eliminação dos trabalhadores incómodos e redução dos custos salariais, claramente beneficiada pela legislação laboral que facilita os despedimentos e prolonga a precariedade laboral.
Bem sabemos que este caminho foi aberto e trilhado pelo PS, numa altura em que muitos professores acreditavam que tínhamos um governo de esquerda. Espero que agora essa ilusão seja definitivamente afastada e não venhamos a ter entre muros demasiados colegas que acham que NC merece o benefício da dúvida, deixando para quando for tarde demais a resistência e a luta em defesa de uma escola pública, democrática e para todos.
Perante as dificuldades e o ataque que vamos sofrer é vital que os professores voltem a ter uma voz activa e reflexiva no interior das escolas. Podemos e devemos utilizar os novos meios de comunicação electrónica mas, por si só, isso não chega. É fundamental intensificar o contacto com outros colegas menos atentos promovendo a discussão franca e leal sobre a escola que queremos e a escola que nos está a ser imposta.
As aulas terminaram, os professores vão ter agora direito a um merecido descanso e é tempo de retemperar forças. Mas não é tempo de baixar a vigilância e ignorar o que o futuro nos reserva, porque o governo e o ME não vão de férias. Adivinham-se tempos ainda mais difíceis e um Setembro que pode vir a ser muito duro para um número significativo de colegas, em especial os contratados a quem não será renovado o vínculo. Mas também para muitos professores dos quadros que serão forçados a uma mobilidade mascarada, cumprindo partes do horário em diversas escolas do mesmo agrupamento. Ou então forçados a uma mobilidade efectiva devido aos horários zero.
Se temos que reconhecer que hoje a simpatia de NC e o estado de graça de PPC constituem um sério obstáculo à unidade dos professores na defesa dos seus direitos, convém não desesperar e aguardar que a verdade faça o mesmo percurso do azeite, aproximando-se da superfície, tornando visível o programa oculto do governo e permitindo o esbatimento das clivagens e preconceitos ideológicos que impedem muitos de ver o óbvio: entregar o ensino às leis do mercado será o passo decisivo para acabar com o ideal de uma escola humanista, inclusiva e formadora de cidadãos de pleno direito.