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Depois de ter ironizado em volta do conceito de eduquês, parece-me ser tempo de explicar o que é o eduquês e a quem ele efectivamente beneficia.
O termo foi cunhado por Eduardo Marçal Grilo, mas o conceito nunca foi clarificado. Nuno Crato, com o patrocínio da Gradiva de Guilherme Valente, percebeu que a utilização do termo poderia ter potencial comercial e utilizou-o no título de uma obra de alegada reflexão sobre o estado da educação, dada à estampa em 2006, a pouco meses da aprovação do ECD de Maria de Lurdes Rodrigues, que era nessa altura incensada pela generalidade dos comentadores como a grande reformadora da educação portuguesa.
Na introdução à sua obra NC identifica dois campos que enquadram um debate essencial ao conhecimento da Educação em Portugal: num situa pessoas, ideias e atitudes que têm tido um papel dominante na política educativa. Ideias que habitualmente se identificam, nem sempre de forma correcta, com a «escola moderna», com o «ensino progressista» ou com o «ensino centrado no aluno». Ideias que se estendem por várias áreas políticas, que tiveram influência crescente no Ministério da Educação ao longo dos anos 80 e 90, que portanto vingaram sob a acção de governantes de partidos tão diversos como o CDS/PP, o PPD/PSD e o PS (p.9); no outro situa uma opinião pública difusa que se manifesta descontente com estado actual da educação e que tem a noção intuitiva de terem sido os teóricos da pedagogia moderna que conduziram à situação presente (p.9).
O livrinho teve sucesso e rapidamente atingiu 6 ou 7 edições (a que possuo é a 6ª e data de Maio de 2006).
O que é curioso é que, “no fragor da luta”, chegamos a 2011 com um Nuno Crato já não autor do “Eduquês em Discurso Directo: uma crítica da pedagogia romântica e construtivista”, mas ao Nuno Crato ministro da educação, ao mesmo tempo que os seus seguidores transformam o eduquês num exclusivo da esquerda, sendo que um dos cristãos novos mais exacerbados até acusa a blogosfera docente fenprofiana de ter saudades do benaventismo.
E depois os outros é que reescrevem a história.
A verdade verdadeira é que o eduquês constituiu uma bela invenção de quem nada sabe por pouco passar das opiniões difusas e intuitivas, em vez de baseadas em evidências empíricas, mas que ainda assim garante audiências e impacto mediático suficiente para andar na crista da onda.
O termo foi de facto cunhado por Marçal Grilo, mas o “eduquês” que Nuno Crato descreveu criticamente no seu livrinho foi, eu nem direi uma invenção, mas uma aberração que o autor tem na sua cabeça, produto de aflitiva ignorância. Para não falar na náusea que me impediu de ler até ao fim (mas aguentei até poucas páginas do fim) devido à desonestidade intelectual de frequentemente citar curtinhas frases retiradas do contexto, permitindo-lhe assim deturpar e ridicularizar as ideias de pessoas cujo real pensamento
conheço, e de ir buscar um ou dois exemplos reais mas insólitos que só se representam a si próprios e decerto a mais nenhum professor, falo, sim, da ignorância de vários conceitos, tais como o construtivismo (confundindo-o com uma relativamente recente voga com a qual nada tem a ver a comunidade científica), ou o ensino centrado no aluno (que só loucos praticariam conforme a ignorante e ridícula ideia que NC tem disso), etc.
Também o benaventismo foi nefasto, mas nessa altura os professores, no terreno, reconheceram logo que o era. E virão a reconhecer daqui a não muito tempo o engano em que parecem estar a cair muitos que ainda não perceberam a desqualificação e o pensamento super-retrógrado do seu actual ministro.
Por mim, que já estou aposentada mas não deixo, por isso, de me preocupar com a Educação, já escrevi no meu blogue (e enviei para o FB) o que tinha a escrever sobre o novo ministro da educação – agora e quando publicou o tal livrinho -, pelo que já me basta, já não tenho paciência para me ocupar com esse senhor.
O “eduquês”
A palavra eduquês não foi cunhada por Nuno Crato, como muita gente pensa, mas pelo ministro da Educação Marçal Grilo, do governo socialista de António Guterres. O termo de Grilo referia-se criticamente ao jargão pomposo, mas vazio e incompreensível, com que certos pedagogos do dito ministério redigiam os seus relatórios. Uma “linguagem retorcida, falsamente académica e obtusa”, escreveu em 2007 sobre o eduquês o filósofo Desidério Murcho, que observava também isto: “Regra geral, quanto mais obscuro é um texto, mais o autor tem incompetências a esconder.” Até aqui, tudo bem.
Eis senão quando o genial Nuno Crato se apropria do termo de Marçal Grilo, fazendo dele título do livro “Eduquês” em Discurso Directo (Gradiva, 2006), mas conotando-o arbitrariamente com as doutrinas pedagógicas do chamado “facilitismo”. Quando hoje se fala em eduquês, evoca-se a messiânica figura de Nuno Crato, o mais recente salvador da educação em Portugal. Crato sabia muito bem que todo o português medianamente sensato é alérgico ao facilitismo, mas sabia melhor ainda que ao abordar o assunto estava a acariciar uma zona erógena do público conservador, esse mesmo que coloca os filhinhos em escolas privadas, mas está sempre a dizer mal do ensino público, porque alegadamente lhe vai ao bolso. A jogada publicitária de Crato rendeu bem, como a sua carreira posterior exemplifica.
A crítica do facilitismo é pau para toda a obra, usado alternadamente, e até simultaneamente, com a crítica do insucesso escolar. Se há muitos chumbos, é a falência do sistema de ensino, se há poucos, é o cancro do facilitismo. Entre a falência e o cancro, o Ministério da Educação tem ainda cento e tal mil professores à perna, que não querem ser avaliados. Não os avaliar é irresponsabilidade (e facilitismo), avaliá-los é prepotência. Estás feito ao bife, Ministério.
Pelos sentimentos catastrofistas e irracionais que frequentemente desperta, a crítica do facilitismo é um argumento de eleição (e de eleições) contra a democratização do ensino, que é assim responsabilizada pela falta de educação que os pimpolhos levam de casa para a escola. A crítica do facilitismo do sistema iliba de responsabilidades o facilitismo das famílias e reconforta os contribuintes que fogem ao fisco.
A partir do livro do Crato foi a desbunda total, cada qual puxando a semântica para a sua brasa. O matemático Jorge Buescu, por exemplo, identificou no “eduquês” uma doutrina global, já não só portuguesa, mas mundial, abrangendo países da primeira linha, como a Grã-Bretanha. Essa doutrina global preconizaria, idiotamente, o “desaparecimento dos conteúdos” no ensino, o “esvaziamento do currículo”, em nome duma estúpida luta contra o “formalismo” do ensino. Segundo os depravados propagandistas do “eduquês” (explica Murcho), o formalismo consistiria, em “repetir sem compreender palavreados, fórmulas, factos, datas.” Ora a crítica do formalismo teria levado (segundo Murcho) os pedagogos do “eduquês” a preferirem os debates, as “exposições da treta” e os “teatrinhos de trazer por casa” à realização de testes e exames. O Murcho jura que sim.
Inevitavelmente, veio depois um pateta qualquer e disse que o eduquês se resumia afinal em decorar ideias “politicamente correctas”, parvoíces vagas e sem substância, como a ecologia e o anti-racismo. Veio outro imbecil e proclamou, convictamente, que o eduquês era “a política de educação da esquerda.” Não sei se já alguém descobriu que o inventor do eduquês foi José Sócrates ou o falecido Bin Laden. Aguardo desenvolvimentos.
Zé Barreto, 26 de junho de 2011
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