Assisti ontem ao lançamento do livro «Pagadores de Crises», da autoria do jornalista José Goulão.

À medida que ia ouvindo as intervenções de Manuel Carvalho da Silva e de José Manuel Pureza, os dois convidados pelo autor para fazerem a apresentação da obra, vinham-me à memória vários dos capítulos da obra de António Avelãs Nunes, «As voltas que o mundo dá», dado à estampa em Agosto deste ano.

O livro de José Goulão debruça-se sobre a arqueologia e a genealogia do neoliberalismo, descrevendo o trajecto de um rio que, tendo a sua fonte na Escola Económica de Chicago com Milton Freedmanm, começou a ser visível no Chile de Pinochet e foi engrossando nos EUA de Reagan e no RU de Margaret Thatcher, até se espraiar pelo mundo ocidental.
A temática do livro de Avelãs Nunes é a mesma, usando eventualmente uma escrita mais académica e, como tal, um pouco mais densa. O autor começa por fazer uma revisão da literatura sobre a teoria económica descrevendo as raízes do estado burguês, analisando o estado de direito liberal e a emergência do estado social enquanto solução de compromisso para a manutenção do capitalismo, proposta por Keynes.
Em ambas as obras parece ser comum uma crítica forte à contra-revolução monetarista, iniciada na década de oitenta do século passado, com o declínio e implosão do bloco comunista e do pacto de Varsóvia, a emergência dos Chicago Boys cujos mentores foram Freedman e Hayek, a generalização do uso das novas tecnologias de informação e o ataque cada vez mais intenso aos direitos sociais e laborais, sustentado na diminuição dos direitos sindicais e na desvalorização dos sindicatos, enquanto parceiros na construção das políticas públicas.
No essencial a convergência entre as duas obras, que são de leitura imprescindível para quem esteja interessado em perceber os contornos da(s) crise(s) do capitalismo, radica na constatação de que os dirigentes políticos que têm governado os países ocidentais e, em particular, os que construíram a União Europeia tal como a conhecemos hoje, estão completamente enfeudados ao sacrossanto mercado, sacrificando tudo à liberdade suprema da circulação de capitais. E neste tudo inclui-se também a soberania nacional, uma vez que o capital deixou de ter pátria a partir do momento em que o mercado accionista passou a ser global e deixou de necessitar da intermediação da(s) banca(s) nacionais para especular em tempo real, em qualquer ponto do globo.
O que não deixa de ser curioso, para lá da tristeza que impõe, é que a destruição do estado social europeu tenha ficado a cargo dos partidos social-democratas e socialistas europeus que, fazendo a gestão social do capitalismo, criaram as condições para a aplicação das políticas da direita que supostamente deviam combater.
Tudo em nome da liberdade individual, do direito supremo da propriedade privada dos meios de produção (incluindo a propriedade intelectual), como se o conhecimento produzido pela humanidade, e os avanços tecnológicos que nos deslumbram e enriquecem, pudessem existir sem um longo caminho e inúmeros contributos de todos os seres humanos que nos precederam.
A(s) crise(s) que todos os dias nos entra(m) pela casa dentro, sendo uma das crises cíclicas do capitalismo, atinge(m) apenas o trabalho e continua a engordar o capital. A tal ponto que, para José Goulão, ela já se institucionalizou e podemos até pensar que passou a constituir um novo regime político.
Face a este estado de coisas torna-se necessária uma resposta consistente do campo democrático porque, como lembra Avelãs Nunes no final da sua obra:
«[…]as mudanças necessárias não acontecem só porque nós acreditamos que é possível um mundo melhor: o voluntarismo e as boas intenções nunca foram o motor da história. Essas mudanças hão-de verificar-se como resultado das leis de movimento das sociedades humanas. Mas os povos organizados podem acelerar o movimento da história e podem “fazer” a sua própria história, dispondo-se à luta para tornar o sonho realidade. E se o sonho comanda a vida, a utopia ajuda a fazer o caminho.»