Alertado pelo Ramiro Marques, fui ler o acordão do TC que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma contida no artigo, 15.º n.º 5, alínea c) do referido Decreto-Lei n.º 15/2007, por violação do nº 2 do artigo 47.º da Constituição.
Não tendo eu formação juridíca, para além do autodidatismo inerente à leitura e interpretação das centenas de diplomas legais que, enquanto professor, tive que fazer ao longo de trinta anos, não sou capaz de responder à magna questão: que efeitos práticos terá esta decisão do TC?
No entanto, a leitura do acordão e das declarações de voto dos membros do tribunal parece-me ser muito instrutiva, não ao nível da inconstitucionalidade daquele artigo, mas sobretudo ao nível do entendimento relativo às outras normas apreciadas pelo tribunal.
É que o pedido de inconstitucionalidade foi feito também em relação às norma contidas no artigo 46º n.º 3 e no artigo 10º, n.º 8.
Por agora quero fixar a minha atenção no artigo 46º n.º 3, que determina que as quotas para as menções classificativas de Muito Bom e Excelente serão fixadas por despacho conjunto dos responsáveis do governo pelas áreas da educação e da administração pública.
Sobre esta norma o TC decidiu pela não declaração de inconstitucionalidade. A fundamentação dessa decisão, bem como a declaração de voto de vencido do Sr. Juiz Conselheiro Mário Torres, constituiram para mim uma leitura muitíssimo esclarecedora sobre a interpretação de preceitos legais e o entendimento que se pode fazer da letra e do espírito das leis.
Na sua fundamentação o TC esclarece que:
Importa acrescentar que não compete ao Tribunal avaliar o mérito, e nos termos em que é feito, da utilização, neste contexto, de um sistema de quotas. Trata‑se do exercício de escolhas de ordem política que o Governo faz, enquanto órgão de condução da política geral do país e órgão superior da Administração Pública (cf. artigo 182.º da Constituição). Tal como se disse no já mencionado Acórdão n.º 142/85, não cabe ao Tribunal substituir-se ao legislador, na tarefa de encontrar a solução justa, mas apenas averiguar se a solução por este escolhida possui uma suficiente justificação objectiva e racional: «[o] que cabe, portanto, fazer, na referida sede [de controlo da proibição do arbítrio] não é ‘substituírem-se’ os órgãos de controlo ao legislador, e aferirem da justificação ou racionalidade da solução legislativa pela sua própria ideia do que seria, no caso, a solução ‘justa’ (…) o que cabe a esses órgãos é tão somente averiguar se a norma que têm diante de si possui uma suficiente justificação objectiva; o que lhes cabe, por outras palavras, é ‘cassar’ unicamente ‘as soluções legais de todo o ponto insusceptíveis de credenciar‑se racionalmente’». (Acórdão nº 142/85, publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, Vol. 6.º, pp. 127-8).
Isto parece-me significar que o tribunal não tinha que se pronunciar sobre a bondade de um sistema de quotas aplicado à avaliação de professores, mas apenas verificar se essa medida contraria de alguma forma os preceitos constitucionais. Porque a avaliação das decisões políticas deve ser feita no plano político e não no plano legal.
No entanto, na sua fundamentação o TC recorreu, entre outras fontes, à investigação recente produzida por Olga Maia e Maria Manuel Busto que afirmam o seguinte (O novo regime laboral da administração pública, Almedina, 2006, pp 89):
Pretende-se com este regime estabelecer uma cultura de meritocracia na administração pública, aproximando o sistema público do privado, em que o desempenho profissional é o factor-chave da avaliação profissional do funcionário. A avaliação do desempenho é considerada a pedra angular em qualquer sistema de gestão de recursos humanos, pelo que a aplicação deste modelo à administração pública é crucial para a tão esperada reforma do sector. (…)
Já sobre a necessidade de estimular os funcionários públicos em função do mérito, designadamente da eliminação dos estímulos decorrentes da antiguidade e da previsão de medidas remuneratórias diferenciadas, em função da produtividade, o TC remete também para Paulo Veiga e Moura, A privatização da função pública, Coimbra Editora, 2004, pp 413 e ss.
Acresce que o acordão, para justificar porque é que considera que o sistema de quotas não fere o princípio da igualdade, considera que para que uma avaliação seja credível deve acompanhar a distribuição normal de Gauss ou andar lá perto, uma vez que o tribunal afirma que:
Desde logo, os contingentes são definidos previamente à avaliação, de modo que os avaliadores sabem que só podem atribuir um número limitado de classificações acima de Bom. Além disso, a escala de classificações tem uma amplitude de um a dez valores (artigo 46.º, n.º 1, do Estatuto), permitindo atribuir uma nota adequada a cada avaliado, de modo a espelhar a diversidade dos desempenhos verificados. As menções qualitativas correspondem a uma escala numérica previamente definida (artigo 46.º, n.º 2, do Estatuto) e a nota final é calculada a partir de um conjunto de critérios de avaliação extensos e variados, relativos ao desempenho concreto e efectivo do avaliado (artigo 45.º do Estatuto).
Daí decorre que uma avaliação séria e rigorosa levará a dispersar as classificações atribuídas pelos diversos graus da escala, diminuindo a probabilidade de os avaliados com classificação superior a Bom serem em número superior ao das quotas fixadas.
A tomar à letra e como bom este entendimento do TC sobre o que é uma avaliação séria e rigorosa, todos os professores que consideram sério e rigoroso o trabalho que fazem com os seus alunos deverão passar a utilizar a curva de Gauss como referencial para as classificações a atribuir aos seus alunos, donde decorre que em todas as escolas deverá haver 30% de negativas. Quando no ME alguém protestar sobre o agravamento verificado nos níveis de insucesso escolar e retenções, é só remetê-lo para este acordão do TC.
É que os Srs. Juízes Conselheiros, eventualmente sem se darem conta, sugerem que os avaliadores utilizem a escala de classificação para manipular a atribuição das classificações finais, atribuindo «uma nota adequada a cada avaliado, de forma a espelhar a diversidade dos desempenhos verificados», conseguindo dessa forma uma avaliação séria e rigorosa.
Por outro lado, o Sr. Juiz Conselheiro Mário Torres, na sua declaração de voto de vencido, considera que esta norma viola os princípios da proporcionalidade e da igualdade. A sua argumentação é de leitura fundamental para quem estiver interessado em combater politicamente o ECD, o actual modelo de avaliação e o sistema de quotas. Vejamos quais os fundamentos dessa declaração de voto:
A intervenção de uma pluralidade de avaliadores, a multiplicidade dos factores a atender e, no que às duas mais altas classificações releva, o seu condicionamento a elevadíssimas taxas de cumprimento das actividades lectivas (95%, para as menções qualitativas iguais ou superiores a Bom, nos termos do artigo 46.º, n.º 5, do Estatuto, ou mesmo 100% para a atribuição de Excelente, agora exigida pelo n.º 5 do artigo 21.º do Decreto Regulamentar n.º 2/2008, norma regulamentar de mais do que duvidosa legalidade) integram requisitos bastantes para a devida ponderação das menções a atribuir.
Ao que acresce, no caso da atribuição da menção de Excelente, a exigência de uma específica fundamentação da proposta, com explicitação dos contributos relevantes proporcionados pelo avaliado para o sucesso escolar dos alunos e para a qualidade das suas aprendizagens (artigo 46.º, n.º 4).
A suficiência dos novos mecanismos instituídos para assegurar um sistema de avaliação rigoroso torna desnecessária, e por isso desproporcionada, a imposição de um sistema “cego” de quotas.
Mas, para além da violação do princípio da proporcionalidade (por se tratar de solução desnecessária e excessiva), o sistema em causa viola ainda mais flagrantemente o princípio da igualdade.
Ele propicia que dois professores com igual mérito – que obtiveram como classificação média das pontuações atribuídas, por dois avaliadores credenciados, em cada uma das fichas de avaliação valores a que correspondiam as menções de Muito bom (de 8 a 8,9 valores) ou de Excelente (de 9 a 10 valores), e que, além disso, preencheram os requisitos do cumprimento de 95% (ou de 100%, a ter‑se por legal a exigência do n.º 5 do artigo 21.º do Decreto Regulamentar n.º 2/2008) das actividades lectivas em cada um dos anos do período escolar a que se reporta a avaliação, e ainda, no caso da atribuição da menção de Excelente, lhes foram especificamente reconhecidos, através de fundamentação expressa da proposta classificativa, os contributos relevantes por eles proporcionados para o sucesso escolar dos alunos e para a qualidade das suas aprendizagens – venham a ser diferentemente classificados pela circunstância, meramente aleatória e a que são de todo estranhos, de um deles ter o “azar” de exercer funções em escola não agrupada ou agrupamento de escolas onde já foi atingida a percentagem máxima dessas classificações fixadas no despacho previsto no n.º 3 do artigo 46.º, e o outro ter a “sorte” de exercer funções em escola ou agrupamento onde essa quota ainda não foi atingida.
A arbitrariedade e iniquidade da solução agrava‑se porque, diferentemente do que sucedia e sucede na avaliação do desempenho da Administração Pública em geral, em que as percentagens máximas de classificações estavam e estão previamente fixadas por diploma regulamentar (5% de Excelente e 25% de Muito bom – artigo 9.º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 19‑A/2004, de 14 de Maio) ou legal (5% de Desempenho Excelente para os dirigentes superiores; 25% de Desempenho relevante e 5% de Desempenho excelente para os dirigentes intermédios e restantes trabalhadores – artigos 32.º, n.º 4, 37.º, n.º 5, e 75.º, n.º 1, da Lei n.º 66‑B/2007, de 28 de Dezembro), o estabelecimento das percentagens máximas de menções qualitativas relativamente aos professores ser feita através de despacho ministerial conjunto, cuja data de prolação não se mostra determinada, e que tem como único referente “os resultados obtidos na avaliação externa da escola”. O carácter extremamente vago deste pretenso “critério” de fixação das percentagens máximas torna intoleravelmente indeterminado o sistema instituído, o que ainda exaspera a arbitrariedade intrínseca da solução.